Autor: Mario Arthur Favretto
Ao longo de toda sua existência,
o ser humano tem se deparado com diversos fenômenos que não sabe explicar. Não
havendo um corpo de conhecimentos conciso que pudesse ser utilizado para tal e sendo
um símio imaginativo que é, desenvolveu diversas explicações sobrenaturais numa
tentativa de criar respostas para os problemas que o rondavam. Desta forma,
fenômenos naturais como trovões e secas, foram atribuídos a deuses zangados,
bem como outras entidades sobrenaturais.
Doenças, por serem ocasionadas
por seres vivos que não são visíveis a olho nu, ou disfunções desconhecidas no
funcionamento do organismo humano, foram atribuídas a entidades sobrenaturais
malignas ou justiceiras. Atualmente, com os avanços das ciências biológicas e
médicas, muitas destas doenças que se acreditava serem ocasionadas por seres
sobrenaturais, passaram a ser melhor entendidas, onde vírus, bactérias e
disfunções psiquiátricas/neurológicas tornam-se explicações corriqueiras.
Conforme mencionado em texto
anterior neste blog, pessoas com epilepsia, por exemplo, eram consideradas
pessoas sob influência de deuses ou espíritos malignos na antiguidade e idade
média, ou como pessoas possuídas por demônios, conforme afirma a bíblia cristã
sobre a epilepsia, ainda utilizada atualmente (Bíblia cristã - Mateus 17:
15-18). Porém, mesmo durante períodos antigos, muitos homens ilustres
procuraram uma explicação científica para a causa dessa doença, conforme
diversos dados apresentados por Magiorkinis e colaboradores (2010), referente à
abordagem da epilepsia no antigo Egito, Babilônia, Grécia e Roma. Atualmente,
pessoas com epilepsia passaram a ser tratadas de forma digna com medicamentos e
um acompanhamento médico, tratamentos desenvolvidos pela ciência.
Percebe-se então que desde a
antiguidade, apesar dos esforços depreendidos por diversos pesquisadores, e de
diversas fontes de informações e conhecimentos gerados, a explicação
sobrenatural para doenças sem causa visível aparente continuou sendo utilizada
em detrimento da realidade. Desta forma, certas doenças foram consideradas como
comprovações dos anseios pela existência do sobrenatural que tantas pessoas
possuem.
Um dos primeiros aspectos a
analisarmos nesta situação é que possessão implica na existência de almas ou
outras entidades imateriais não detectáveis por nenhuma tecnologia atualmente e
que de certa forma poderia interagir com a matéria. Assim, supostamente um
demônio ou alma penada, existiria de forma imaterial, mas mesmo essa imaterialidade
interagiria com a matéria, alterando o comportamento de uma pessoa e utilizando
seu corpo para fins demoníacos. Esta suposta possessão acaba implicando na
existência de uma também suposta alma humana que seria de certa forma tirada do
corpo humano, relegada a algum canto dentro da própria pessoa, enquanto a alma
invasora controlaria o corpo da pessoa.
Porém, sobre o problema da alma
devemos abordar as afirmações de Costa (2005):
“[...] segundo a lei da conservação da energia, a quantidade
de energia do Universo deve permanecer a mesma; mas se alguma energia do mundo
material se perde na alma, ou esta a introduz no mundo material, essa lei
precisa ser revista. Outro exemplo: a teoria da evolução ensina que nós
evoluímos a partir de espécies inferiores. Quando teria então surgido a alma?
Como explicar, ademais, que precisamos de um cérebro tão grande, se uma alma
inextensa [e diríamos aqui imaterial*]
com certeza caberia em um cérebro do tamanho de um grão de ervilha? Como
explicar o efeito de drogas e medicamentos na mente? Como explicar que uma
doença como a de Alzheimer, que reduz o cérebro até um terço do seu tamanho,
tenha efeitos tão devastadores sobre a atividade mental? Como explicar, em
suma, o papel do cérebro? [...]” * - Adendo meu.
Se existisse uma alma imaterial
e nela estivessem contidas todas as nossas lembranças, sentimentos, desejos,
tudo que compõe nossa personalidade, como então doenças neurodegenerativas
poderiam influenciar estas aptidões? Se existisse uma alma, como uma pessoa com
mal de Alzheimer poderia perder suas memórias? Se alma possui todas estas
características que serão usadas em um plano pós-vida, então não haveria
motivos para nos preocuparmos com doenças e transtornos mentais. Só por estas
afirmações já percebemos que as respostas para estas dúvidas implicam na
inexistência de uma alma, e assim, na inexistência deste fenômeno de possessão.
O cérebro é um conjunto de
neurônios que, em seu funcionamento como um todo, pode permitir um processo de
emergência, onde encontramos então a consciência e por meio destas interações
entre neurônios temos a formação do que chamamos de “eu”, onde não há uma
divisão entre mente e cérebro, pois ambos são a mesma entidade física. Porém, longe
de ser um órgão perfeito o sistema nervoso de todos os animais está sujeito a
falhas, em especial por meio de excesso ou falta de produção de
certos neurotransmissores que implicam em alterações na forma
como o cérebro funciona. Por vezes acontecendo uma ruptura com a realidade o
que poderia implicar no surgimento de alucinações, em caráter mais frequente
como esquizofrenia ou em eventos isolados como surtos psicóticos, que ainda em
algumas ocasiões podem ser considerados não-patológicos. Para tanto, basta que
ocorram alterações no funcionamento de suas vias dopaminérgicas, por exemplo, e
toda a percepção da realidade por parte do indivíduo é alterada (Brandão,
2004).
Estes estados de consciência
alterada, muitas vezes seguidos de alucinações, podem ser induzidos por
sugestão e manifestados por estado sonambúlico, que podem resultar em
modificações deste estado por meio de respostas verbais e físicas dadas as
injunções sugestivas. O indivíduo sugestionável assume de forma
temporária outras identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande
desgaste físico e amnésia ao sair do processo (Nina-Rodrigues apud Almeida et
al., 2007), provavelmente sendo estas induções responsáveis pelos êxtases e
transes religiosos ou eventuais “possessões” em cultos.
Tal apropriação de pessoas sugestionáveis
a estas situações é uma deturpação de um provável estado de saúde mental
debilitado, em que as pessoas que deveriam procurar auxílio médico e não
participar destas atividades, acabam sendo usadas como atrações religiosas
devido a falta de conhecimento científico da grande maioria da população. Assim
permanecemos como na antiguidade, com doenças sendo confundidas com possessões
demoníacas.
Observe que em estudo com 115
médiuns em São Paulo, Almeida (2004) constatou que:
“[...] a mediunidade provavelmente se constitui numa vivência
diferente do transtorno de identidade dissociativa. A maioria teve o início de
suas manifestações mediúnicas na infância, e estas, atualmente, se caracterizam
por vivências de influência ou alucinatórias, que não necessariamente implicam
num diagnóstico de esquizofrenia.”
Desta forma, a alucinação não é
necessariamente algo patológico, estima-se que 10-30% da população sem
patologias mentais tenham tido alguma experiência deste tipo (Almeida, 2004). Essas
ocorrências de “deslizes” no funcionamento cerebral contribuem para que se espalhe
a ideia de visões sobrenaturais e eventuais possessões. Principalmente
associadas a um ambiente de falta de conhecimento científico por parte da
população e ao profundo desejo de acreditar na existência do sobrenatural, que
de certa forma, seria uma confirmação das expectativas em relação à existência
de um pós-morte.
Nesta discussão seria ainda
importante mencionar a síndrome de Gilles de la Tourette, doença cujos sintomas
já foram definidos como possessão demoníaca (Cavana e Ricards, 2013). Seus
sintomas são similares aos descritos no livro Malleus Malleficarum para pessoas que supostamente estariam
possuídas por um demônio (Orsi, 2011). Essa
doença é um transtorno neuropsiquiátrico que geralmente ocorre na infância, mas
que se prolonga para a idade adulta, ocasionando tiques motores e vocais,
ocasionada por alterações neurofisiológicas e neuroanatômicas (Fen et al.,
2001). Um vídeo de uma pessoa com um caso extremo desta síndrome pode ser visto
abaixo. Após ver o vídeo, refletindo sobre a situação em que estas pessoas e
outras que apresentam síndromes e alterações no funcionamento bioquímico e
fisiológico do cérebro se encontram, não deveríamos nos esforçar para que
houvesse um maior entendimento público sobre o que é ciência e medicina de
verdade, e tentar reduzir a difusão de pseudo-ciências, pseudo-medicinas e
crendices? O que seria de uma pessoa dessas em uma sociedade ainda tomada por
crenças plenas na existência de demônios? Seria exorcizada e queimada em uma
fogueira? A compreensão mais aprofundada da ciência, medicina e a prática do
ceticismo diante de crenças são fundamentais para garantir que pessoas com
transtornos neurológicos/neuropsiquiátricos passem a ter um atendimento
humanizado e correto. Que não sejam mais vistas como aberrações demoníacas em
palcos de igrejas ou rituais de exorcismo, e sim recebam o tratamento adequado
para que possam seguir de forma digna com suas vidas.
Almeida,
A.A.S.; Oda, A.M.G.R.; Dalgalarrondo, P. 2007. O olhar dos psiquiatras
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2011. O livro dos milagres: a ciência por trás das curas pela fé, das relíquias
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