terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Possessão, transtornos cerebrais e o problema da alma imaterial


Autor: Mario Arthur Favretto


Ao longo de toda sua existência, o ser humano tem se deparado com diversos fenômenos que não sabe explicar. Não havendo um corpo de conhecimentos conciso que pudesse ser utilizado para tal e sendo um símio imaginativo que é, desenvolveu diversas explicações sobrenaturais numa tentativa de criar respostas para os problemas que o rondavam. Desta forma, fenômenos naturais como trovões e secas, foram atribuídos a deuses zangados, bem como outras entidades sobrenaturais.
Doenças, por serem ocasionadas por seres vivos que não são visíveis a olho nu, ou disfunções desconhecidas no funcionamento do organismo humano, foram atribuídas a entidades sobrenaturais malignas ou justiceiras. Atualmente, com os avanços das ciências biológicas e médicas, muitas destas doenças que se acreditava serem ocasionadas por seres sobrenaturais, passaram a ser melhor entendidas, onde vírus, bactérias e disfunções psiquiátricas/neurológicas tornam-se explicações corriqueiras.
Conforme mencionado em texto anterior neste blog, pessoas com epilepsia, por exemplo, eram consideradas pessoas sob influência de deuses ou espíritos malignos na antiguidade e idade média, ou como pessoas possuídas por demônios, conforme afirma a bíblia cristã sobre a epilepsia, ainda utilizada atualmente (Bíblia cristã - Mateus 17: 15-18). Porém, mesmo durante períodos antigos, muitos homens ilustres procuraram uma explicação científica para a causa dessa doença, conforme diversos dados apresentados por Magiorkinis e colaboradores (2010), referente à abordagem da epilepsia no antigo Egito, Babilônia, Grécia e Roma. Atualmente, pessoas com epilepsia passaram a ser tratadas de forma digna com medicamentos e um acompanhamento médico, tratamentos desenvolvidos pela ciência.
Percebe-se então que desde a antiguidade, apesar dos esforços depreendidos por diversos pesquisadores, e de diversas fontes de informações e conhecimentos gerados, a explicação sobrenatural para doenças sem causa visível aparente continuou sendo utilizada em detrimento da realidade. Desta forma, certas doenças foram consideradas como comprovações dos anseios pela existência do sobrenatural que tantas pessoas possuem.
Um dos primeiros aspectos a analisarmos nesta situação é que possessão implica na existência de almas ou outras entidades imateriais não detectáveis por nenhuma tecnologia atualmente e que de certa forma poderia interagir com a matéria. Assim, supostamente um demônio ou alma penada, existiria de forma imaterial, mas mesmo essa imaterialidade interagiria com a matéria, alterando o comportamento de uma pessoa e utilizando seu corpo para fins demoníacos. Esta suposta possessão acaba implicando na existência de uma também suposta alma humana que seria de certa forma tirada do corpo humano, relegada a algum canto dentro da própria pessoa, enquanto a alma invasora controlaria o corpo da pessoa.
Porém, sobre o problema da alma devemos abordar as afirmações de Costa (2005):

“[...] segundo a lei da conservação da energia, a quantidade de energia do Universo deve permanecer a mesma; mas se alguma energia do mundo material se perde na alma, ou esta a introduz no mundo material, essa lei precisa ser revista. Outro exemplo: a teoria da evolução ensina que nós evoluímos a partir de espécies inferiores. Quando teria então surgido a alma? Como explicar, ademais, que precisamos de um cérebro tão grande, se uma alma inextensa [e diríamos aqui imaterial*] com certeza caberia em um cérebro do tamanho de um grão de ervilha? Como explicar o efeito de drogas e medicamentos na mente? Como explicar que uma doença como a de Alzheimer, que reduz o cérebro até um terço do seu tamanho, tenha efeitos tão devastadores sobre a atividade mental? Como explicar, em suma, o papel do cérebro? [...]” * - Adendo meu.

Se existisse uma alma imaterial e nela estivessem contidas todas as nossas lembranças, sentimentos, desejos, tudo que compõe nossa personalidade, como então doenças neurodegenerativas poderiam influenciar estas aptidões? Se existisse uma alma, como uma pessoa com mal de Alzheimer poderia perder suas memórias? Se alma possui todas estas características que serão usadas em um plano pós-vida, então não haveria motivos para nos preocuparmos com doenças e transtornos mentais. Só por estas afirmações já percebemos que as respostas para estas dúvidas implicam na inexistência de uma alma, e assim, na inexistência deste fenômeno de possessão.
O cérebro é um conjunto de neurônios que, em seu funcionamento como um todo, pode permitir um processo de emergência, onde encontramos então a consciência e por meio destas interações entre neurônios temos a formação do que chamamos de “eu”, onde não há uma divisão entre mente e cérebro, pois ambos são a mesma entidade física. Porém, longe de ser um órgão perfeito o sistema nervoso de todos os animais está sujeito a falhas, em especial por meio de excesso ou falta de produção de certos neurotransmissores que implicam em alterações na forma como o cérebro funciona. Por vezes acontecendo uma ruptura com a realidade o que poderia implicar no surgimento de alucinações, em caráter mais frequente como esquizofrenia ou em eventos isolados como surtos psicóticos, que ainda em algumas ocasiões podem ser considerados não-patológicos. Para tanto, basta que ocorram alterações no funcionamento de suas vias dopaminérgicas, por exemplo, e toda a percepção da realidade por parte do indivíduo é alterada (Brandão, 2004).
Estes estados de consciência alterada, muitas vezes seguidos de alucinações, podem ser induzidos por sugestão e manifestados por estado sonambúlico, que podem resultar em modificações deste estado por meio de respostas verbais e físicas dadas as injunções sugestivas. O indivíduo sugestionável assume de forma temporária outras identidades, confusão mental ou sonolência, além de grande desgaste físico e amnésia ao sair do processo (Nina-Rodrigues apud Almeida et al., 2007), provavelmente sendo estas induções responsáveis pelos êxtases e transes religiosos ou eventuais “possessões” em cultos.
Tal apropriação de pessoas sugestionáveis a estas situações é uma deturpação de um provável estado de saúde mental debilitado, em que as pessoas que deveriam procurar auxílio médico e não participar destas atividades, acabam sendo usadas como atrações religiosas devido a falta de conhecimento científico da grande maioria da população. Assim permanecemos como na antiguidade, com doenças sendo confundidas com possessões demoníacas.
Observe que em estudo com 115 médiuns em São Paulo, Almeida (2004) constatou que:

“[...] a mediunidade provavelmente se constitui numa vivência diferente do transtorno de identidade dissociativa. A maioria teve o início de suas manifestações mediúnicas na infância, e estas, atualmente, se caracterizam por vivências de influência ou alucinatórias, que não necessariamente implicam num diagnóstico de esquizofrenia.”

Desta forma, a alucinação não é necessariamente algo patológico, estima-se que 10-30% da população sem patologias mentais tenham tido alguma experiência deste tipo (Almeida, 2004). Essas ocorrências de “deslizes” no funcionamento cerebral contribuem para que se espalhe a ideia de visões sobrenaturais e eventuais possessões. Principalmente associadas a um ambiente de falta de conhecimento científico por parte da população e ao profundo desejo de acreditar na existência do sobrenatural, que de certa forma, seria uma confirmação das expectativas em relação à existência de um pós-morte.
Nesta discussão seria ainda importante mencionar a síndrome de Gilles de la Tourette, doença cujos sintomas já foram definidos como possessão demoníaca (Cavana e Ricards, 2013). Seus sintomas são similares aos descritos no livro Malleus Malleficarum para pessoas que supostamente estariam possuídas por um demônio (Orsi, 2011). Essa doença é um transtorno neuropsiquiátrico que geralmente ocorre na infância, mas que se prolonga para a idade adulta, ocasionando tiques motores e vocais, ocasionada por alterações neurofisiológicas e neuroanatômicas (Fen et al., 2001). Um vídeo de uma pessoa com um caso extremo desta síndrome pode ser visto abaixo. Após ver o vídeo, refletindo sobre a situação em que estas pessoas e outras que apresentam síndromes e alterações no funcionamento bioquímico e fisiológico do cérebro se encontram, não deveríamos nos esforçar para que houvesse um maior entendimento público sobre o que é ciência e medicina de verdade, e tentar reduzir a difusão de pseudo-ciências, pseudo-medicinas e crendices? O que seria de uma pessoa dessas em uma sociedade ainda tomada por crenças plenas na existência de demônios? Seria exorcizada e queimada em uma fogueira? A compreensão mais aprofundada da ciência, medicina e a prática do ceticismo diante de crenças são fundamentais para garantir que pessoas com transtornos neurológicos/neuropsiquiátricos passem a ter um atendimento humanizado e correto. Que não sejam mais vistas como aberrações demoníacas em palcos de igrejas ou rituais de exorcismo, e sim recebam o tratamento adequado para que possam seguir de forma digna com suas vidas.





Referências
Almeida, A.A.S.; Oda, A.M.G.R.; Dalgalarrondo, P. 2007. O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão. Revista de Psiquiatria Clínica 34(supl. 1): 34-41.
Almeida, A.M. 2004. Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas. Tese. Departamento de Psiquiatria. Faculdade de Medicina. Universidade de São Paulo. 278p.
Brancão, M.L. 2004. As bases biológicas do comportamento: introdução à neurociência. Ed. Gráfica Pedagógica Universitária. 244p.
Cavana, A.E.; Rickards, H. 2013. The psychopathological spectrum of Gilles de la Tourette syndrome. Neuroscience and Behavioral Reviews 37: 1008-1015.
Costa, C. 2005. Filosofia da Mente. Ed. Zahar. 67p.
Fen, H.C.; Barbosa, E.R.; Miguel, E.C. 2001. Síndrome de Gille de la Tourette: estudo clínico de 58 casos. Arquivos de Neuropsiquiatria 59(3-B): 729-732.
Magiorkinis, E.; Sidiropoulou, K.; Diamantis, A. 2010. Hallmarks in the history of epilepsy: epilepsy in antiquity. Epilepsy & Behavior 17: 103-108.
Orsi, C. 2011. O livro dos milagres: a ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos. Rio de Janeiro: Vieira & Lent.